Cria de Antares, no bairro de Santa Cruz, o escritor Jessé Andarilho viu outro dia passar na sua frente uma mãe, com chinelo na mão, atrás da filha de 8 anos. A mulher gritava com a criança, avisando: “Vou te deixar de castigo: uma semana sem ir à biblioteca!”. A cena aconteceu a alguns passos da Biblioteca Marginow, montada por Jessé na pandemia, em um antigo posto policial da favela, que virou um verdadeiro ponto de encontro da garotada (e de adultos também). Nas prateleiras do lugar, há cerca de dez mil títulos.
— Antigamente, castigo era ter que ir para a biblioteca — diz Andarilho, hoje com 40 anos, e que foi ler sua primeira obra de literatura aos 24. — Vi na cena com essa criança que está valendo todo o meu sacrifício. Quando eu fazia arte, meus pais me mandavam para o quarto ler a Bíblia. E havia essa imagem de que arte é coisa ruim. E aqui estamos nós, fazendo arte.
Autor de “Fiel” (Editora Objetiva), de 2014, Andarilho — apelido “da época das andanças nas praias, das pichações e tudo mais” — tenta transformar mentes e realidades por meio da leitura, assim como aconteceu com ele próprio. Quando tinha 24 anos, recebeu de uma amiga dos tempos de escola e já na faculdade o livro “No coração do comando”, de Júlio Ludemir. Ele tinha um lava-jato em Antares e achava que leitura “era coisa para intelectuais”. Até que acabou cedendo ao apelo da colega e devorou de uma vez só o livro, perdendo até o convite para um churrasco.
Era só o começo. Depois disso, foi um livro atrás do outro, sempre com a temática das comunidades.
— Na favela, havia poucos intelectuais, e sempre gostei de rua. Nem de videogame gostava. Sempre fui moleque de rua e gente boa de fazer amizades. Nem sabia surfar, mas ia para a Barra com a prancha debaixo do braço, sem chinelo, para parecer cria dali e paquerar. Me divertia — conta Jessé, que, ao virar leitor, passou a almejar algo diferente: escrever, e escrever nada menos do que um livro.
Antes da pandemia, Andarilho teve a ideia de montar uma biblioteca em Antares — comunidade onde faltam equipamentos de cultura e lazer e sobram milicianos dando as cartas. E conseguiu, com ajuda da associação de moradores, o apoio do Batalhão de Santa Cruz para ocupar o antigo posto policial. Jessé já era figura conhecida no meio literário e integrava uma rede da periferia com nomes como os do rapper MV Bill, do empreendedor social Celso Athayde e de Marcus Faustini, atual secretário municipal de Cultura. Também já fazia vídeos de poesia (são mais de 200) com gente das comunidades, num projeto que batizou de Marginow. Os saraus rodavam de escolas a ponto de ônibus.
— A finalidade era tirar quem está à margem e trazer para o now, o agora — explica ele, que também rodou em Antares um filme, “Segura malandro”, com o rapper e ator Xamã.